Conversas com um estranho

Na última mensagem, tive algumas concordancias e discordancias, como era de esperar. Para esclarecer qualquer mal entendido, não é que obrigue quem passa por mim e me vê em estado de dormencia a estar em silencio, apenas mostrei o meu ponto de vista. Eu ficaria o mais silenciosa possivel se visse alguém a tentar pôr o sono em dia, mesmo que fosse num banco de um café ou no meu jardim preferido. Mas são pontos de vista, correto? Tudo o que tenho a fazer é respeitar, só peço que respeitem o meu.
Agora que estamos esclarecidos quanto à última mensagem, vamos ao conteúdo de hoje. Tal como expliquei ontem, eu passo a vida a observar tudo e todos, e isso às vezes pode passar a impressão errada para as outras pessoas. Fica aqui a dica, se virem uma rapariga, estranha e sozinha, a olhar para vocês fixamente, quase que parece que está a tentar ouvir a vossa conversa com o vosso grupo, familia, companheiro, o que seja, não se assustem, provavelmente essa sou eu e fixei-me em vocês por alguma razão inofensiva e completamente lógica para mim, acreditem. Não sou de levantar brigas.
Adiante, como disse, esse meu estranho hábito de escritora pode causar medo ou impressões erradas a meu respeito nas outras pessoas, e a partir daí há apenas 3 caminhos que podem seguir:
a) irritam-se, olham para mim fixamente e perguntam qual é o meu problema
b) sentem-se assustadas e constrangidas e vão embora
Ou
c) sentem-se intrigadas, param o que estão a fazer e veem pedir-me para se sentarem ao pé de mim.
A opção c) aconteceu-me há uns dias atrás, duas semanas, creio eu, e tenho que admitir que me deixou de queixo caído.
Sempre nos disseram, desde crianças, que não se deve falar com estranhos, que se deve evitar falar com desconhecidos, mas se seguissemos essa regra, qual era a piada de viver? Como é que fazíamos amigos ou conhecíamos pessoas novas? Eu gosto de conhecer estranhos, principalmente pessoas de idade consideravelmente mais avançada que a minha. Gosto de ficar a ouvir o que têm para dizer, mesmo que seja o caso de apenas precisarem de dois dedos de conversa, de desabafar, ou estão sozinhas e querem companhia. Às vezes, esses estranhos desconhecidos ajudam-nos involuntariamente, e podem dar-nos as respostas que nem imaginávamos que precisávamos. Foi isso que me aconteceu, e eu nunca me hei-de esquecer daquela meia hora de conversa. Foi o que bastou.
Eu estava na minha, sentada numa esplanada, a ouvir a minha música, a beber o meu café, a fumar o meu cigarro, simplesmente a fazer tempo para ir para uma aula de código, nem alegre nem tristr, apenas sozinha, sem chatear ninguém e sem querer ser chateada. E é claro, a fazer a minha coisa preferida: observar tudo e todos.
Até aqui, tudo certo. Mas vai disto que alguém se aproxima da minha mesa. Olhei para cima, desligando a música. Uma mulherzinha baixinha e rechonchuda, com os seus 60 e poucos anos, cabelo vermelho, roupas excentricas e cara meiga estava lá parada a olhar para mim. Podia dizer tudo: se podia tirar uma cadeira, se eu tinha um cigarro que lhe desse, se lhe podia emprestar o meu isqueiro, se podia tirar o cinzeiro, perguntar-me as horas, perguntar direções.... Qualquer coisa! Passou-me tudo pela cabeça, menos o que ela perguntou. Ela sorriu, pousou a mão numa das cadeiras vazias e apenas disse: "posso sentar-me consigo um bocadinho?"
Foi nesse momento, nesse exato momento que para muitos irá parecer insignificante, que conheci uma das pessoas mais corajosas que já cruzaram a minha vida. Não por se sentar comigo, isso não custa nada. Não por me contar a sua história, é preciso coragem para isso, mas não tanta. Mas sim por ter passado por tudo o que passou e ainda assim arranjar a coragem para sorrir e continuar de cabeça erguida.
Espero que história dela vos inspire tanto como me inspirou a mim:
Apenas sei que a senhora se chama Catarina, tem 64 anos (se a memória não me falha) e já passou por tudo o que há para passar nesta vida. Aos 17 anos, na estupidez que essa idade acarreta, juntou-se com o marido, atualmente ex-marido. Por volta dos 20 anos, teve a sua primeira e única filha, que tem atualmente 26 anos. O marido era incapaz de mostrar carinho e afeto a qualquer uma delas, e por causa disso, a nossa querida senhora, certa noite, pediu ao marido que fizesse amor com ela. A horrenda criatura a que ela chamava "marido" passou-se e deu-lhe uma verdadeira sova, usando o bom e velho português. Um taxista amigo da Catarina viu o estado em que ela estava e disse-lhe: "Catarina, eu deixo-te no hospital, mas quando lá chegares, sabes o que vai acontecer, não sabes?"
Explico já muito rapidamente: já na altura em que a Catarina era mais jovem havia (algum) protocolo contra a violência doméstica, tal como há agora. Ou seja, se uma mulher, criança ou até mesmo homem (porque também os há) chegar a um hospital com certos e determinados ferimentos, o hospital tem ordens para fazer a queixa. Se se confirmar que se trata de violência doméstica, o agressor é preso e a vitima levada para um abrigo.
Estando isso esclarecido, continuemos a história: a filha da Catarina, nessa altura, ainda tinha apenas alguns meses de idade, e ao ouvir o seu amigo taxista, a Catarina só pensou na filha. Com o pai preso e a mãe num abrigo, quiçá sem poder trabalhar, a pobre criaturinha inocente com certeza seria mandada para um lar de acolhimento, ou para outro sitio qualquer, onde pudesse ser sustentada. Então a Catarina pediu, implorou, ao seu amigo que não a levasse ao hospital, que não fizesse queixa, que não fizesse nada que lhe pudesse tirar a filha, que ela arranjaria uma solução.
Nos anos seguintes, ela tentou que tudo parecesse normal, que a filha nunca a visse a apanhar do marido. Agora, a menina tem 10 anos de idade, e acaba por ver a triste cena. Por instinto, para tentar proteger a mãe, a menina meteu-se no meio. O pai, sem sequer hesitar, levou a mão atrás e deu uma estalada na cara da menina, atirando-a para o chão. Foi a primeira e única vez que ele bateu na filha, e segundo a Catarina, essa foi a última gota de água. Nunca mais ia deixar que o marido voltasse a tocar na filha, e assim foi. No dia seguinte, contactou o seu advogado e fez todos os preparativos para o divórcio. Quando os papeis estavam prontos, assinou-os e apresentou-os ao marido, exigindo que ele os assinasse também.
Estando isto feito, e visto que a filha de ambos já tinha idade para pensar, tiveram que ir a tribunal de menores. Perguntaram à criança com quem preferia ficar, com quem se sentia melhor e tudo isso. A menina olhou para os dois progenitores, ficou em silêncio um momento e respondeu às perguntas todas com uma única frase: "neste momento, tenho que ficar com o meu pai porque a minha mãe não tem condições para eu estudar. Mas assim que a minha mãe tiver condições para eu estudar, eu volto para ao pé da minha mãe, e não quero voltar a ver o meu pai."
Tamanha sabedoria e coragem para uma criança de 10 anos, não é?
Os assistentes sociais, advogados, juizes e afins ficaram de queixo caído com a resposta da criança, mas aceitaram a sua decisão e as condições que ela impunha, e assim foi feito. Ela ficou efetivamente com o pai para poder continuar a estudar, com constante vigilância, e tudo correu bem. Assim que pôde, voltou para perto da mãe.
Hoje, a mãe continua sozinha e feliz vivendo um dia de cada vez, a menina já mulher juntou-se com um rapaz, e o pai está junto com outra mulher e é um verdadeiro mandado, manso como um cordeiro. As voltas que o mundo dá, não é?
Aqui fica a lição de hoje: não tenham medo de falar com um estranho, é apenas um amigo por conhecer. Se ele pedir a vossa companhia, deixem que ele se sente, ouçam o que ele tem para dizer, esse simples ato pode mudar a vida dessa pessoa. Quem sabe, talvez até mude a vossa...

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Espero que tenham gostado desta mensagem de hoje. Obrigada por lerem. Por favor, comentem aqui em baixo 👇 o que acharam da história da Catarina, se conhecem alguém a passar por algo parecido ou se também já tiveram uma conversa com um estranho.

Comentários

  1. Olá olá! Grande história de vida, mas o mais importante é o que se aprende! Adorei o texto.

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    Respostas
    1. olá olá outra vez :P

      Obrigada, mais uma vez. Ainda bem que há alguém que gostou mesmo de o ler, porque quase toda a gente o achou chato, mas como costumo dizer, não vim ao mundo para agradar aos outros. Também achei uma grande história, são pessoas como a Catarina que me dão força para continuar, e aprendi muito da conversa que tive com ela. Experimenta um dia. Quem sabe o que podes aprender?

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