Praxes

Não sei se fui a única a reparar, mas, mais uma vez, estamos a entrar, ou já entrámos, na época das praxes. Quem anda na faculdade, de certo que saberá melhor que eu. Mas acho que há aqui alguma coisa que não está a bater certo…
 
Para mim, a praxe é uma iniciação. Uma forma imaginativa e engraçada de dar as boas vindas ao caloiro, uma maneira diferente de um veterano dizer a um caloiro: "se precisares de alguma coisa, sabes a que porta vir bater". E no entanto, e com muita tristeza minha, não é isso que eu vejo.
 
É suposto a praxe criar bom ambiente e, sobretudo, laços entre caloiros e veteranos, e no entanto cria o completo oposto, pelo menos a meu ver. Hoje, as praxes que se veem por aí são, por muitos, consideradas maus tratos e bullying. O que é que eu vejo?
 
- Alunos obrigados pelos veteranos a rastejarem em estrume, que pode estar repleto de doenças. Mais, há pessoas com acne e outros problemas de pele violentíssimos, alguns deles graves, e essa estupidez pode agravar ainda mais a situação. Mas claro, o que é que isso interessa? Desde que os veteranos se divirtam, não é?
 
- Caloiros ajoelhados e obrigados a emborcarem, no verdadeiro sentido da palavra, um alguidar cheio de vinho carrascão, porque "tem de aprender a beber". Com essa brincadeira, já houve vários casos de pessoal a ir parar ao hospital em coma alcoólico. Mas claro, o que interessa é que todos os outros se divirtam, não é?
 
- A mais estúpida de todas, e esta fui eu testemunha: um grupo de quatro caloiros tinham de fazer um suporte para uma cadeira com canas e tinham que prender a cadeira a essas mesmas canas, para que fosse confortável e seguro para o veterano que eles tinham que acartar às costas de um lado para o outro da escola durante TODA a semana de praxe. Isto, meus senhores, digam o que disserem, é humilhante e abusivo.
 
E estas são só aquelas que me estão a ocorrer agora, mas em contra partida, vou mostrar-vos o que é uma verdadeira praxe, o que são verdadeiros veteranos. Eu não ando em nenhuma escola superior nem nada parecido, por opção, porque não quis continuar a escola, mas a minha mãe andou, e andou na conhecida ESAS - Escola Superior Agrária de Santarém! A escola que atira alunos para dentro de pilhas de estrume, mas nem sempre foi assim. A minha mãe passou lá os três melhores anos da vida dela, e já vão ficar a perceber porquê:
 
- Quando a minha mãe era caloira, foi praxada com mais três pelo rei das praxes daquela escola - que demorou, tipo, 15 anos para acabar o curso. A praxe foi organizada e combinada de maneira a não coincidir com as aulas de ninguém, para não prejudicar ninguém. Encontraram-se no pátio, ela, o veterano dela e os outros três que iam ser praxados, em conjunto com o resto da escola, como é quase tradição. A praxe foi muito simples: o veterano estava vestido de padre, a minha mãe era a noiva, outro caloiro estava de gatas no chão com um lençol por cima a fazer de altar, um outro era o noivo, e ainda se juntou o terceiro, que era o filho do feliz casal. Parece uma grande trapalhada, e até me poderão perguntar se estar de gatas com um lençol por cima não é humilhante, e a minha resposta é um tremendo NÃO! Porque todos se divertiram, veteranos e caloiros, ainda hoje se lembram do que foi feito, e ainda hoje, quase quarenta anos depois, são todos grandes amigos, e ainda contam esta história sempre que se juntam.
 
No ano seguinte, a minha mãe era considerada veterana, e como tal foi incluída na comissão de praxes. E por acaso até fez umas bastante engraçadas…
 
- Uma que eu me lembro agora de repente, foi quando ela escolheu um grupo aleatório de caloiros, que já se davam bem e já se conheciam, e lhes disse que tinham até ao final das aulas deles para prepararem um cântico ou um poema, ou algo parecido, contra os veteranos. Estiveram literalmente o dia todo de roda do que iriam fazer, e no final do dia, lá se juntaram os alunos todos à espera para ver o bonito espetáculo. Basicamente, era um grupo com imensas raparigas e só tinham um rapaz, então o rapaz pôs-se de joelhos no chão com os braços arqueados acima da cabeça, a fazer de caldeirão, e as raparigas eram as bruxas, e então começaram todas a saltar e a dançar em redor dele e a recitar o poema contra os veteranos, tal como lhes tinha sido dito, como se fosse um feitiço ou uma maldição. Ainda hoje todos dizem que nunca viram uma praxe tão gira e só lamentam não haver telemóveis na altura…
 
- Uma outra, foi quando a comissão de praxes decidiu escolher um grupo de raparigas, completamente ao calhas, e disseram-lhes que tinham que fingir que estavam a varrer o pátio, com vassouras invisíveis. Viu-se de tudo: umas varriam tudo muito certinho, outras assobiavam e cantavam mais do que varriam, outras fingiam que a vassoura invisível era uma guitarra ou um parceiro de dança, e ainda houve outra que teve a brilhante e imaginativa ideia de, com uma completa cara de pânico de quem não pode ser apanhada, fingir estar a varrer o lixo para debaixo de um tapete. Não parece nada de especial, mas eles dizem que aquilo só visto.
 
- Vou só dizer uma última para não divagar demasiado. Uma outra que ela também fez foi pôr dois caloiros na fila para o refeitório a fazerem de máquina de picar senhas, onde era suposto entalarem a senha de almoço entre os dedos e fazerem o som "tlim". Apenas isto. Mas, como às vezes os caloiros são mais malucos que os veteranos, um deles, que infelizmente já não está entre nós, achou que tinha mais piada trincar as senhas em vez de só fingir que as picava. Resumindo, a praxe acabou com várias senhas esburacadas e babadas e um senhor da cantina muito irritado.
 
Para mim, isto são praxes, em que os caloiros se divertem tanto que decidem entrar no jogo e dar um toque pessoal à situação, tornando tudo mais giro, tornando-o em algo que nunca ninguém irá esquecer.
 
E eis a razão pela qual eu disse que há quarenta anos atrás os veteranos tinham mais consideração pelos caloiros do que têm agora:
 
- Brincadeiras parvas sempre houve, certo? Eis a pequena diferença: ao contrário de hoje em dia, a comissão de praxes à qual a minha mãe pertenceu tinham em máxima consideração o bem-estar dos alunos a quem faziam praxe. Havia uma brincadeira que eles faziam que era pintar a cara dos caloiros com batom, e sabiam perfeitamente que havia pessoal com acne e bexigas doidas e outras doenças de pele igualmente graves e incomodativas. Por saberem isso, arranjavam dois tipos de batons: um normal, para quem tinha pele saudável, e outro hipoalergénico, para proteger os que tinham doenças de pele. Coisa que tenho quase a certeza que nem sequer passa pela cabeça do pessoal da comissão de praxes hoje em dia.
 
 
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Esta foi a minha mensagem de hoje, e peço desculpa pela minha ausência. Volto a repetir: o que eu digo aqui é apenas o meu ponto de vista pessoal. Não é suposto ninguém levar o que eu digo como uma ofensa. Mas se quem estiver a ver isto pertencer a alguma comissão de praxes este ano, espero que o que eu disse aqui hoje vos apele à consciência. Estão a lidar com pessoas, lembrem-se disso…


Comentários

  1. Vou comentar o que escreveste pelo simples facto de ter sido praxado o ano passado e posso dizer-te que nunca tinha visto uma praxe tão integrante como a do IPG (Instituto Politécnico da Guarda), foi um dos melhores anos da minha vida, nós éramos "obrigados" a conhecer outros caloiros, porque, claro, ninguém se conhecia e então os superiores e veteranos praxavam-nos de várias maneiras para conhecer os outros alunos, mas nunca de maneira a que fosse algo ofensivo ou abusador. Nós cantávamos, todas as praxes tinham um tema e éramos praxados conforme isso. A minha madrinha, ou família de praxe, nunca abusou de mim, muito pelo contrário. Mas já sabíamos que se algum caloiro fizesse asneiras, todos pagávamos na Ronda (é quando todos os caloiros da faculdade são praxados à noite) e dependendo do que esse caloiro, seríamos praxados mais severamente ou não, neste caso não seria para abusar dos caloiros, era para nós aprendermos que certas coisas não se fazem, porque 90% tem 18 anos e não têm aquela maturidade...
    Para terminar, que já está aqui uma coisa enorme, eu nunca fui praxado em tempo de aulas, ou era nos intervalos ou depois das aulas. Tanto veteranos como superiores, na Guarda, respeitam muito os caloiros, sejam eles dados à praxe ou não. E isso é o que diferencia de outras instituições, como Lisboa e Porto, ou mesmo Coimbra.
    Desculpa, mas ficaste com mais um testemunho xD

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    1. ainda bem. Foste um dos afortunados e tiveste sorte em quem te praxou. Mas conheço vários casos em que aconteceu exatamente o contrário, e eu acho isso injusto.
      Mas ainda bem que tiveste sorte e gostaste dos teus anos na faculdade e te correu tudo bem. Haja pelo menos uma pessoa a quem isso aconteceu…
      E podes escrever comentários grandes sempre que quiseres, eu leio tudo até ao fim e com o maior prazer

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