Suicidio

Hoje, enquanto estava num café com o meu melhor amigo, ouvi (sem querer) uma conversa que me deixou a pensar, principalmente porque me identifiquei com o assunto da conversa.
 
Não percebi bem como é que o tema veio à baila, o que percebi foi que uma rapariga comentou com um amigo dela que não pode ficar sozinha em casa. O rapaz perguntou porquê, e a miúda respondeu que começa a pensar em matar-se; que já tentou uma vez, mas, por sorte, a mãe apareceu quando ela estava a tomar o último comprimido, e conseguiu levá-la para o hospital a tempo de a salvarem.
 
Eu não vou começar aqui a julgar a miúda, porque eu também passei por aí. As coisas começaram a acumular, eu sofria horrores na escola, era assediada, agredida, perseguida, abusada, feita bobo da corte e saco de boxe, todo o santo dia, toda a santa hora, por parte de quatrocentas e quarenta e oito pessoas. Podem chamar-me o que quiserem, mas eu acho que quatrocentas e quarenta e oito pessoas contra uma é uma desvantagem demasiado grande para qualquer um aguentar. É simplesmente demasiado, e toda a gente tem o seu limite, e eu atingi o meu…
 
Planeei tudo ao mais ínfimo pormenor: o que iria usar para me matar, onde e quando é que o iria fazer, o que iria escrever no bilhete que ia deixar à minha mãe a explicar o porquê de eu o ter feito, estava tudo mais do que pensado e repensado. Comprei um caderno, de propósito, na papelaria da escola para planear tudo, usei-o para escrever o esboço da carta que ia deixar à minha mãe, cheguei a escrever nele o meu testamento, a pedir à minha mãe que tirasse metade do que era meu para ela e que desse a outra metade ao meu pai para que fosse entregue à minha irmã, que já era nascida, quando tivesse idade para compreender e para receber o que eu lhe tinha deixado.
 
Tive o cuidado de ver e rever o meu plano, uma e outra vez, para me certificar que não partia em vão, que não me esquecia de nada nem de ninguém. Passei o ano letivo todo a planear todos os pormenores, até que chegou o esperado dia.
 
Escolhi o dia 21 de Junho, exatamente um mês depois de fazer doze anos, e em plenas férias de verão, porque sabia que ia ficar sozinha em casa e que não ia ser interrompida de maneira nenhuma.
 
Escrevi a carta à minha mãe, em papel de carta que o meu avô me tinha oferecido, e essa carta foi a primeira e única vez em que disse com as palavras todas o que tinha acontecido, o que me tinha sido feito durante demasiado tempo, os nomes de algumas pessoas que eu já sabia de cor e salteado por ter feito tantas participações sem nunca ver frutos, sem nunca ver justiça, quase lhe atirei à cara todas as vezes que implorei para sair daquela escola e ela nunca me escutou, escrevi tanto que tive a sensação que a minha mão ia começar a sangrar.
 
Guardei o papel dentro de um envelope com o nome da minha mãe escrito e deixei-o em cima da mesa da cozinha, sabendo que era o primeiro sitio onde ela ia assim que chegasse do trabalho.
 
Fui a uma das gavetas e tirei uma faca em especial, um faca cuja lâmina mede cerca de 25 centímetros, uma verdadeira faca de caça, que o meu pai comprou todo orgulhoso porque é parecida com a faca do Rambo.
 
Peguei na faca, certifiquei-me que estava tudo no lugar que eu queria, e fui para o quarto. Deitei-me na cama numa posição confortável. Pousei a ponta da lâmina no meu peito, diretamente apontada ao coração, e fechei os olhos, enquanto ganhava coragem para o passo final deste longo processo.
 
Faltava tão pouco. Era uma morte tão fácil. Um último empurrão e acabava tudo.
 
E foi aqui que o inesperado aconteceu. Vi várias imagens a passarem-me à frente dos olhos, umas que já se tinham passado, e outras que se iriam passar se eu levasse a minha avante. Foi como se o meu subconsciente saísse do meu corpo e me tentasse mostrar razões para me travar, para me impedir de acabar o que tinha começado. Vi todos os momentos felizes da minha vida. Vi as tardes inteiras de palhaçada com o meu falecido cão. Vi as idas à praia com os meus pais, quando ainda estavam juntos. Vi a enorme confusão à volta dos jantares de família nas épocas festivas. Vi todos os sarilhos em que eu e o meu primo nos metíamos porque não conseguíamos estar quietos.

De repente, no meio disto tudo, o meu subconsciente viajou para o futuro, e pude ver a imagem alternativa da minha mãe, com a minha carta e o meu testamento na mão, ajoelhada ao lado da minha campa, lavada em lágrimas, completamente vazia e destruída, a perguntar-se onde é que teria falhado. Onde é que poderiam estar os sinais que ela não viu. O que é que lhe tinha escapado.
Só aí é que eu percebi: não estaria a castigar quem me fez mal. Não estaria a obriga-los a viver com o que aconteceu na consciência para o resto da vida, porque quem me fez mal nem sequer iria querer saber se eu estava viva ou não. Eu iria estar a castigar quem não tinha culpa de nada, quem nem sequer sabia do que se estava a passar. Quem iria viver com a culpa, quem ia carregar a minha morte na consciência, quem ia passar o resto da vida a perguntar "e se…?", ia ser a minha mãe. Uma mulher que nunca me fez nem me quis mal nenhum, que me deu tudo o que pôde com o maior sacrifício, seria a ela que eu estaria a castigar com a minha cobardia.

Foi quando a razão me atingiu como um balde de água fria e a pergunta "o que é que eu estou a fazer?" ecoou na minha cabeça uma e outra vez enquanto me sentava na cama e ficava a olhar para a faca. Eu não ia pôr fim a nada, iriam simplesmente escolher outra vitima e ia apenas começar um ciclo vicioso. E isso não ia acontecer. Não enquanto eu pudesse impedi-lo. Não enquanto eu estivesse viva.

Lembro-me que corri do quarto para a cozinha e atirei a faca para dentro da gaveta como se estivesse infetada com a peste negra. Peguei nos papéis todos, arranquei as páginas do caderno que estavam escritas, peguei numa caixa de fósforos, fui para o quintal e fiz uma mini-fogueira com os planos e os restos do enorme disparate que estava prestes a cometer.

Quando foi tudo reduzido a cinzas, devo ter ficado a olhar para o caderno, agora com umas páginas a menos, umas duas horas antes de voltar a pegar na caneta e dar um novo propósito àquelas páginas em branco. Transformei-o numa espécie de diário, onde só eram bem-vindas as coisas boas, por muito poucas ou pequenas, que tinham acontecido durante o dia. Usei isso como meu pilar de apoio, e, comigo, funcionou, porque em vez de tentar imaginar maneiras de morrer, chegava ao fim do dia a tentar recapitular tudo o que tinha acontecido para conseguir reunir todas as coisas boas para as escrever, detalhadamente, no meu diário. E assim ficava entretida e ocupava a mente com coisas que devem ocupar a mente de uma miúda de doze anos.

Bom, agora que já dei o meu testemunho, voltemos ao objetivo principal desta mensagem. Eu sei que costumo fazer criticas, por vezes um bocadinho duras, nos textos que escrevo, mas hoje o meu propósito é diferente. Se quem está a ler isto está a passar pelo mesmo que passei, se também já chegou ao ponto de estar a uma unha negra de cometer este enorme disparate, mas ainda continua cá, meu, parabéns! Eu não estou a ser irónica, eu estou, literalmente, a dar-vos os meus sinceros parabéns, porque é preciso coragem para ignorar aquela vozinha irritante no fundo da consciência que insiste que o mundo vai estar melhor sem vocês, que ninguém vai sentir a vossa falta, que todos ficam a ganhar se desaparecerem. Eu sei o que isso é, é difícil, mas se é isto que ouvem quando estão sozinhos com os vossos pensamentos, É TUDO MENTIRA!

Nunca acreditem nessa vozinha, porque ela está a mentir. Toda a gente está neste mundo por alguma razão, toda a gente tem um propósito, toda a gente é querida por alguém. Ninguém está cá apenas para ocupar espaço, ninguém cá está por acaso.
Vocês são queridos, sim. Vocês são amados, sim. Se ainda não o são, então irão sê-lo. Haverá sempre alguém que vai sentir a vossa falta, que daria tudo para trocar de lugar com vocês, nem que fosse para vos fazer ver o mundo com outros olhos. Lembrem-se sempre disso.

Eu não vos vou mentir e dizer que é uma luta fácil, que tem um fim certo, porque é o total contrário. A minha luta começou quando eu tinha doze anos, e continua até hoje, quase dez anos depois. É uma luta diária, constante, e eterna.
Pensem apenas nisto: eu tinha doze anos quando percebi que estava a cometer um enorme erro, quando percebi que este não podia ser o único caminho, tinha que haver outra maneira de dar a volta por cima. Eu sofria horrores todos os dias, eu enfrentei tudo sozinha, e com doze anos consegui impedir-me de cometer o maior ato de cobardia que pode existir, porque eu simplesmente ia fugir dos meus problemas, e deixá-los a outras pessoas, e elas que os resolvessem. Não é assim, não pode ser assim, as coisas não funcionam assim.

Posto isto, façam estas perguntas a vocês mesmos: o que é que poderá estar a acontecer de tão ruim na vossa vida ao ponto de acharem que a morte é a única solução? Não haverá mesmo outro caminho? Será mesmo verdade que o mundo não mudará com a vossa ausência? Será mesmo verdade que ninguém irá sentir a vossa falta? Pensem no vosso cônjuge. Nos vossos pais. Avós. Tios. Primos. Irmãos. Amigos. Colegas de trabalho. Vizinhos. Até no vosso animal de estimação. Pensem neles por um bocado. No meio desta gente toda, será mesmo verdade que não há ninguém que iria chorar a vossa morte? Têm a certeza que as coisas são como vocês pensam? Vão deixar-se convencer por essa vozinha na vossa cabeça?

Querem um conselho? Não façam isso. Ocupem a cabeça com outra coisa, pensem naqueles que iam viver com a vossa morte na consciência, e VIVAM!


Comentários

  1. Também sou da opinião que todos temos uma missão no mundo! Parabéns pela tua força!

    Bjxxx
    Ontem é só Memória | Facebook | Instagram

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  2. Meu Deus...sinto muito pelo que passaste!
    Juro que falei deste assunto com uma amiga à uns dias e chegámos à mesma conclusão que tu, a vida por mais pontos negativos que tenha, será sempre uma dádiva poder acordar todos os dias, conhecer pessoas novas, novas experiências etc etc..
    Provavelmente já sabes, mas está provado que quando o nosso cérebro se sente a "um passo" da morte, começa a tentar relembrar-se de todas as coisas boas que passámos numa tentativa de nos fazer lutar pela vida! Tinha de partilhar isto contigo, desculpa ahah
    Gostei do texto, como sempre!

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    Respostas
    1. Não faz mal. Já passou, é o que interessa, não é?
      Falaste com uma amiga? Tu ou a tua amiga também passam por isto? Ou passaram?
      Sim, acho que já ouvi falar disso. Toda a gente diz que quando passa por uma experiencia perto da morte, vê a vida a passar à frente dos olhos. Eu acho que é apenas uma descarga de adrenalina, mas eu sou de biologia, então é normal eu arranjar explicação para tudo, acho eu ahah
      Obrigada por partilhares isso comigo. Beijinhos e até à próxima vez

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